foi numa destas tardes oníricas, na casa de um amigo, que conheci o maldito Bukowski. ele tava sentado sobre um daqueles armários de chão, sujo e maltrapilho como o traço de Crumb - aquele mesmo que saiu do underground pra virar uma diva do mercado editorial.
meu amigo tava em seu computador, distraído e indiferente. Bukowski era um velho desprezível, com cheiro de buceta e uma garrafa de vodka barata. saudei-o:
-olá senhor! não o conheço.
-um bosta como você merece o anonimato, ele respondeu furioso e incoerente.
puxei sua garrafa e dei uma talagada extrema. o líquido queimou horrores e não escondi um estertor terrível.
Bukowski riu e disse assim: "cê não é macho o suficiente, meu chapa", ao que eu falei: "não ligo de não ser macho, senhor macho", e ele riu novamente. ao final da risada ficou me olhando com seu característico olhar homofóbico.
ao lado daquele lixo geriátrico, uns livros empilhados. peguei o primeiro, seu nome estava lá: Charles Bukowski eu ainda não sabia quem era ele.
peguei o primeiro livro e li um trecho. era autobiográfico e foi uma das coisas mais lindas que li em vida. as palavras tinham dentes e o discurso por trás delas uma sinceridade vivaz, uma boca contundente e de instintos sagazes.
e tinha uma imagem de um velho lá e foi assim que reconheci que o velho em cima do armário era Bukowski.
-você escreve bem demais, senhor
-não venha me adular, seu bixa! essa sua pose feminina é o seu medo de ser macho. covarde!
o desgraçado tinha força. não reagi. o vi indo embora, deixando um rastro etílico que semeava nos azulejos a discórdia e a divindade.
fiquei chocado, por dias...
e anestesiado também. lia os livros do escritor maldito. ele era careta, homofóbico, machista, mal-educado, ególatra e fodia mal pra caralho. mas, como ele mesmo dizia sobre outros escritores, não tinha medo do sentimento. isso que fazia ele te envolver. Bukowski era uma porra dum cão sarnento atraente.
pelas suas idéias, deveria ser leitura obrigatória para os tradicionais homens, machos do século XX e XXI, dotados de uma caretice redentora para eles. eu não sou desses homens. até acho que seria melhor eles se ferrarem.
só acho que salvaria Bukowski. velho sacana e maldito.
em outro dia, eu tava cambaleando de álcool, debaixo da passarela metálica. velho e amado corredor alcoólico, as estrelas dos postes brilhando, s carros acenando e a infinita avenida para peregrinar. eu fumava um lucky strike.
surgindo do poste, aquele diabo velho e angelical. um velho e uma puta gorda e feia. macho fodedor, que traça qualquer uma. velho safado. Íamo-nos cruzar.
nos cruzamos. ele nem me olhou. tava fodendo a puta em pensamento. suas mãos entravam na bunda dela. apaguei o cigarro na palma da minha mão e furioso falei: "seu velho duma figa. veja o rosto odiado por você, aqui gritando". ele se virou, a velha fúria bêbada: "seu merda, qué qui há? tou indo fazer o que cê num tem coragem. vou meter, meter bem mesmo, nessa puta".
minha carteira fluiu direitinho até minha mão direita. dei à puta umas dez vezes mais dinheiro que ela ganharia chupando o velho e mandei-a embora.
-cê num poder mandar minha puta embora assim! o que cê quer, que eu coma seu cu?
-não, seu velho desgraçado. só queria te falar que você não é muito diferente da porra da humanidade de quem se distancia quando escreve. você caga, mija, peida, arrota e tem medo, muito. medo do sentimento... claro! como me deixei iludir?
Bukowski olhava por dentro de mim. estava esperando começarem os murros e o sangue. eu estava disposto praquilo. no entanto, não foi o que aconteceu. ele se limitou à pergunta: "é só o que tinha a falar?"
eu queria dizer mais. falar que em suas autodefesas ele tentava se achar mais do que era. que em sua visão do mundo, ele hierarquizava tudo e todos através de valores ultrapassados. e, principalmente gritar-lhe: QUE SER VIADO NÃO É COVARDIA ALGUMA! E QUE INCLUSIVE, VOCÊ NÃO CONSEGUE DEIXAR DE CONTAR HISTÓRIAS SOBRE SUAS BIXAS.
mas, seu olhar inutilizava minha atitude.
-não- respondi sério.
-neste caso, tou indo atrás da minha puta. só quero te dizer uma coisa: ninguém sabe o que já vivi nessa droga de vida. pra cê ser que nem eu tem que estar preparado, ser um taco de beisebol manejado com raiva. cê tem que fumar cigarros pesados, beber conhaque num só gole e ainda assim se manter em pé. tem que ser esperto, caralho e não essa bixa que você é! espero nunca mais cruzar contigo na rua.
merda, merda, merda, pura merda. deixei-o ir, atrás de sua América de 150 quilos. Bukowski era um fodido, perdido - não adiantava tratar com alguém tão estúpido e cabeça dura.
sentei-me no chão, curtindo as metáforas visuais do álcool.
nem vinte anos, bêbado, apaixonado e fodido. pronto pra quebrar a cara e lamber meu próprio sangue.
ah, Bukowski... às vezes ce parece saber o que é mesmo a vida.
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