Thursday, May 10, 2007

O escritor perdido escrevendo


Meus personagens se tornaram frios para mim - já não preciso da companhia deles. E escritor que escreve sem a necessidade dos seus escritos pode se considerar a meio caminho de ter de velar pela sua própria Literatura; a minha está quase se provando natimorta.
Alguns protagonistas meus me fizeram cair de paixões e, de fato, tê-los como companhia - às vezes única companhia física (isso mesmo, física!). E, eu passava a sê-los e pensar dentro de seus cérebros. Todo escritor deve fazer assim, para que os conceitos de seus grandes personagens possam fluir. Quando você sentir que defeca, transa e come como algum deles, saberá que se tornou ele. Os pensamentos parecidos vêm com o tempo... Se o personagem é gay e você até então se achava hetero, descobrirá incrível prazer em observar os músculos enrijecidos dos pedreiros na construção vizinha... E se este mesmo pedreiro adentra as portas do seu lar, o auto-controle deve ser exercido para o bem-estar social.
Nunca entrei radicalmente em certos tipos de personagem. Exemplos? Nunca gostaria de ter um pensamento forte de direita, comprometeria minhas amizades e eu seria excluído de minha roda de amigos. Uma vez quase fui linchado em praça pública por tentar mostrar lados positivos em uma ditadura. Impressionante como as pessoas podem reagir à simples menção da palavrinha que começa com D. Tive de deixar o personagem mal-desenvolvido e preferi matá-lo mesmo.
Apesar de mutável, sou discreto. Sou mais de mudar pormenores, intimidades e assuntos internos. Assim, sou sempre o mesmo para a grande massa da sociedade.
Pois bem, tudo bem explicadinho sobre minha maneira de lidar com os seres que crio, ou que me criam, só que até pouco essa relação havia sido de amor e ódio, de companheirismo, de cio, de necessidade extrema... De uns temos para cá a nesga de luz findou, a réstia esmaeceu, a lâmpada rompeu, o sebo da vela derreteu e minha mutabilidade estacionou no tempo...
A vida agitada, cheia de metamorfoses, acalmou-se como um riozinho pacato de uma vila feliz no meio do nada. Quando pego uma folha para escrever, não há prazer, nem tempo, para ser o livro...
Minha alegria em escrever tem diminuído, só que não minha fama, que tem estado em estável crescimento. Tinha ganhado prêmios. O prêmio Tartaruga, por melhor Livro Infantil lido por Adultos; o prêmio da União de Leitores de Escolas Públicas como Escritor Revelação, quando lancei meu primeiro livro de sucesso; e o prêmio dos Acadêmicos do Norte, pelo livro com melhor título - A Pleura Machadiana em Aforismos Aliterados sem Ditongos e sem Hiatos.
Como visto: literatura declinante, reconhecimento ímpar.
Meus últimos livros seguiam a marca da repetição e da técnica comercial de escrita. Um verdadeiro leitor não veria espírito no que eu fazia. Podia ver, no máximo, uma ou outra boa piada, algumas idéias geniais e revolucionárias e só. Tudo do ponto de vista estético, nada criativo. E, ainda assim, os jornais diziam: "Um dos mais originais escritores do país - seu estilo é irreproduzível". Ah, os críticos podiam não saber me copiar, só que eu apenas imitava a mim mesmo.
Já ouvi certas pessoas falarem que não existe mais nada de novo, que tudo é copiado. Discordo veementemente dessas afirmações, várias coisas das quais escrevi foram diferentes de tudo que havia lido e presenciado. Claro que muitas características estão presentes em várias obras - o que se pode fazer se nós seres humanos somos tão semelhantes? Só que, do outro lado da discussão, há os que suprimem as barreiras do aceitável: caso dos meus críticos. Cada linha, cada parágrafo e até o alfabeto romano é considerado "altamente inventivo" quando eu escrevo. Puro exagero de pessoas sem fé em Deus.
Para se ter uma idéia do panorama, tenho agido assim com os personagens de meus livros, contos, novelas, etc. :
a) Histórico
Personagem masculino: general ou desbravador, belo e destemido. Se for para ser fraco, que seja um escritor ou pintor, inteligente, bonito e sensível.
Personagem feminina: Delicada, frágil, gostosa, seios fartos, transa como uma puta e age como um anjo. Envolve-se com o personagem masculino. Caso de ser diferente, é uma feminista de atitude que se apaixona pelo homem que lhe dá dignidade e mostra o quanto é imatura em sua luta. Termina apagada e só é citada no beijo final.
b) Cyberpunk
Personagem masculino: Nerd inteligente e bom de pontaria. Não precisa ter músculos para lutar contra mechs gigantes. Gosta de espalhar vírus via internet - que está em todas as casas, aparelhos e pessoas.
Personagem feminina: Gosta de usar dois revólveres, sabe socar, morder, cuspir e decepar partes do corpo. É pouco ligada ao mundo mecânico. Seu gênio selvagem só é amansado pelo homem protagonista.
c)Drama adolescente
Personagem bonito e pegador: Boa praça, divertido, gente boa. Ninguém tem nada contra ele, a não ser aquela galera que tentou traçar a loiraça da escola e se deu mal. Querem bater no personagem, só que ele é tão chegado que ficam sem jeito.
Loiraça gostosa: Incapaz de pensamentos complexos, tem trauma por causa do pai ausente e dos meninos que só relevam sua aparência física. Cai de encantos pelo personagem bonito e pegador, que disfarça mil amores para levá-la para cama e que termina com ela, para ficar de bom agrado.
Nerd que não pega ninguém: Joga videogame, se masturba, é a salvação para as notas dos descerebrados da escola. Ele escreve poesia, ouve boa música e se dedica às suas paixões femininas. Sua primeira vez é com a gordinha que usa aparelho.
Gordinha com aparelho: Transa com o Nerd e é xingada por todos.
Personagem negro: Quando tem um personagem negro, ele faz piadas burras, relembra a todo o momento que é negro e que vem de um bairro perigoso. Pode morrer sem perdas para a narrativa.

E estes são três exemplos da minha linha "criativa" nos últimos dois anos. Amontoado maciço de clichês. O que faço para não sair tão ralo assim é uma mudar uma ou outra coisa:
a) No romance histórico eu mostro uma visão diferente dos fatos, lembrando que a História é uma ciência inexata; o personagem principal tem arma exótica, diferente da espada; a dama trai o personagem principal e demonstra possuir desejo sexual.
b) O nerd pode gostar de algo mais analógico, como colecionar pedrinhas e brilhantes; a dark woman perde as pernas e passar a operar atrás de um computador, obrigada a superar o trauma; um dos dois personagens principais é um andróide e surge o conflito homemXmáquina; trama amoroso homossexual.
c) O boa praça é sensível e procura, loucamente, ser monogâmico; a loiraça gostosa possui estrias sem fim e uma cicatriz de cirurgia, por isso foge do pau como anoréxico foge do slogan "É impossível comer um só"; o nerd cria uma poção mágica e se torna o melhor futebolista da escola; a gordinha nerd se descobre gostosa para o padrão "norte-americano que come no McDonald's" e vai fazer filmes pornôs no exterior; o negro recita Shakespeare fluentemente.

Daí parte a falsa idéia de "mente altamente inventiva" ou a de "um escritor originalista".

O que fez minha literatura decrepitar a tal nível?
Encontrei a felicidade, aquela que destrói a solidão. Agora, tenho quem me ame, me abrace e dê carinho. Ao sair de casa, só dou risada, bebo feliz, fumo sem preocupações de saúde. Tá tudo tão ótimo como nunca foi. Meus livros vendendo bem, me garantem que eu tenha dinheiro de sobra para gastar feliz, coisa a qual não estou acostumado. Se vejo um pobre, ao invés de padecer com sua situação, dou-lhe dinheiro em troca de uma música, anedota ou história. Se vejo uma comunidade carente, procuro ONGs para ajudá-la - não existindo, eu próprio crio uma. Quando estou entediado, ligo para um dos meus vários amigos e vou beber, transar, dançar, ter prazer. Assim não me sobra tempo para angústia. E sem angústia não há indagação, e sem indagação falta hipóteses, faltando hipóteses c'est fini criatividade.
Na frente do computador, os contatos do MSN não me deixam escrever direito.
A angústia só sobreveio quando notei minha literatura definhando. Por isso estou escrevendo isto. Dou aleluia por estar fazendo literatura de verdade após dois anos jogados fora!

Escreverei mal para sempre?

Sei que pode parecer egoísmo se importar mais com a realização própria que com o bem-estar alheio, só que sou escritor, poxa! Não é me dado outras opções: preciso que um desastre aconteça e essa aura de boa sorte se esvaia.
Preciso de melancolia, falta de perspectiva e medo para voltar a manusear o teclado do computador direito. Que algum familiar meu morra ou que eu arrume uma namorada que me traia, faça-me sofrer, iluda-me, só que dê de volta minha alma de escritor. Vale a pena tudo isso, toda a dor, para que se possa progredir com a escrita que é a maior paixão de quem escreve.
Uma epidemiazinha seria uma boa agora. Uma literatura em cima de morte contagiosa, secreta e furtiva... Uma metáfora para os estranhos mecanismos do destino. Será um best-seller digno.

Sim, admito, preciso da companhia de meus personagens de volta - não se abandona os amigos assim! Quero que meu cérebro se transforme em algo diferente a cada semana.
Não quero continuar nessa felicidade torturante, nessa alegria besta, nonsense e emburrecedora.
Cogito voltar a minha roupa de direitista e discurso extremista... Levar uns sopapos da esquerda é uma maneira fácil de se dar um pouco mal na vida...