Ele estava ali, ajoelhado entre caixas de flakes e aveia, com a barriga martelando a síncope do desespero. Um dia sem comer, até bater a coragem necessária para fazer do território alheio um campo de caça.
Magrinho, chamavam-no de Galego porque descolorira os pêlos da sobrancelha, bigode e cabelo. Sobrou aquele contraste berrante de pele negra e fios de loiro não-naturais. Galego tinha corpo de jovem de quinze anos – só que poderia ter dezoito, vinte, quem sabe dos pobres malnutridos?
Ele não tinha mochila para levar os “seus” pertences: um pacote de arroz de boa qualidade, três pacotes com cereal matinal rico em vitaminas, algumas latas de bebidas em pó, chocolates cheios de fibras vegetais e toda sorte de laticínio possível. No fim, ele parecia um esqueleto carregando uma centena de compras de loja.
Galego, chamo-o assim por falta de outro nome que eu conheça,havia arrastado grandes quantidades de alimentos até o portão principal do galpão – sairia como havia entrado, aproveitando para fugir furtivamente quando um dos primeiros peões da manhã viesse sozinho colocar o caminhão para dentro.
Tudo muito fácil e seguro, e a família de Galego teria comida por pelo menos uma semana. Uma parte ele doaria para a namorada e os pais dela – não falavam muito de Amor, faltavam-lhes ensinamento para que as palavras fluíssem. No entanto, no ato de Amar, existiam poucos tão dedicados.
Se houvesse algum excesso de gêneros para a semana, não se faria de samaritano e venderia a alguém tão pobre quanto ele. Os ganhos seriam revertidos para pilhas, para pagar a conta míngua de luz, comprar alguma bebida e algumas bijuterias para sua amada. Serviria para que ele a levasse para saírem também, havia acabado de lembrar.
Sim, sim, o roubo do século estava muito fácil de ser executado. Galego sorriu... antes do tempo. Aliás, o tempo em nada lhe fora aliado em sua empreitada. Deveria entrar à noite, coletar o que fosse de interesse e partir logo cedo. No entanto, ao entrar, preferiu algum descanso primeiro. Era noite, ele tinha de agir na escuridão, mas tinha medo de escuro. “Preto com medo de escuro?”, troçavam alguns de seus companheiros e Galego se encolhia envergonhado.
Dormiu um pouco, faminto, e seu relógio barato o acordara pouco antes dos primeiros raios de sol entrarem pelos orifícios superiores das paredes laterais. Sendo o galpão bastante extenso, Galego percorreu-o até o Sol espalhar toda sua coroa pelo local.
Leu, com seu parco poder de compreensão, a marca das embalagens de cereais e outros produtos – tudo que seu poder aquisitivo não poderia adquirir, o que não gostava de admitir a si próprio.
Logo que estava tudo alumiado e brilhando como ouro, o rapaz separou os alimentos que tirava de dentro das caixas. Queria ser rápido, para que não fosse pego – importava mais estar de barriga cheia com os familiares do que sozinho e satisfeito. Alguns sacos ele já tinha posto próximos ao portão, e voltava para buscar mais.
Foi aí que os sons se espalharam pelo ar: um barulho de caminhão, vozes do lado de fora (“Vai abrir o portão que tou com as costas doendo!”) e o portão azul sendo empurrado. Galego ficou sem ação: pelo que já observara do funcionamento do galpão, o caminhão estava chegando mais cedo que o normal. Se ele corresse pra fugir, seria fácil pegá-lo. Sem saber o que fazer, ajoelhou-se entre flakes e aveia, a síncope do desespero a bater em seu coração.
O portão foi aberto, dando espaço aos raios solares. O ronco do caminhão se multiplicou, acompanhado do barulho de borracha derrapando. Logo, o som parou e o veículo estava estacionado. Galego podia ver tudo e ouvir, com a ajuda dos ecos, era mais fácil ainda.
A porta do caminhão se abriu e um homem gordo e bigodudo saiu de dentro dela. Ele tinha uma expressão severa, olhos de cão raivoso. Ele ensinaria a Galego que nem sempre as aparências enganam. Estava só ele e mais outro, um garoto três ou quatro anos mais velho que Galego, bem alimentado e robusto. Ele tinha aparência de bom moço.
Galego, que trabalhava desde cedo pela sua família era respeitado pelos seus pares. As velhas da favela o tinham um carinho que se igualavam ao de sua mãe gentil – só que ela cozinhava melhor. Os menininhos queriam imitá-lo: ele era educado, cuidadoso, carinhoso e simpático e namorava a moça mais interessante da região.
Subindo a favela com sua bicicleta, sua fama ia ficando para trás, rolando morro abaixo. Na cidade urbanizada ele tinha mil olhos sobre si. Quando passava por algum pedestre, ele segurava o que tivesse a mão com medo de que o rapaz pudesse levá-lo numa mãozada. Deixando a bicicleta, andava sendo observado e não era raro trocarem de calçada. Nesses momentos, era impossível Galego não se sentir revoltado – ainda mais por esse apelido horrível que recebia na cidade urbanizada. Não decoravam seu nome real – nome de pobre.
Na cidade, ele sempre lembrava de que não era maltratado na favela. Se ali era um servo do capital e dos patrões, na favela era coroado um dos patronos da região. Se ali o preconceito o oprimia, na favela a cor negra mostrava o quanto era diversa em idéias e visuais. A especulação imobiliária e a especulação racial, enfim.
Enfim, nervoso, Galego esgueirava-se entre as estantes em um zigue-zague silencioso. Os dois homens descarregavam o caminhão que trazia toneladas de arroz. Nenhum deles notara os alimentos próximos ao portão, porque haviam seguido direto para o fundo do galpão. Galego alcançou a comida e tentou erguê-la junto com a que trazia de trás da caixa onde estava escondido. Eram mais de dez pacotes e latas. Na ambição de levar tudo para casa, o garoto derrubou duas latas e três sacos na primeira tentativa de levantar a carga. O som metálico da queda ribombou pelo local.
BLAM! TUTUC!
Galego gelou por um instante, e, apressado, selecionou aleatoriamente alguns sacos para carregar e saiu correndo. Alertados pelos ruídos, os dois trabalhadores vieram até o portão do galpão. Logo que viu Galego, o homem mais velho ordenou: “Pegue esse safado, agora!”. E o jovem trabalhador foi atrás.
Galego, leve como uma pluma, podia correr bem rápido normalmente. Porém, estava tendo que carregar muitos objetos na mão – estava leve como uma feira de supermercado. Pouco após ter passado pelo portão, o jovem trabalhador se engalfinhou com o jovem ladrão.
Galego tentou esmurrar seu captor, mas, por mais que se esforçasse, não tinha força que desse resultado. Ele era subnutrido, enquanto o outro era forte e largo. Galego, então, deixou os pacotes de comida caírem e tentou como pôde se desvencilhar. Ao final de um pequeno embate o ladrão estava imobilizado por uma chave de braço.
“Liga pra polícia aí, seu Almeida!”, gritou ofegante o jovem trabalhador.
O seu Almeida veio balouçante e diligente. Chegando perto, Galego pôde rever os olhos de cão raivoso que aquele homem possuía. Assustado, tremia de medo do que aquele demônio poderia ser capaz de fazê-lo. Foi por essa angústia de medo que Galego, num espasmo defensivo, levantou suas pernas num chute que errou o seu Almeida. O homem roliço se assustou brevemente, e depois olhou furiosamente para o jovem delinqüente. Aproximou-se dele, sem medo de outros chutes.
E novos chutes vieram, chutes desesperados, desconexos e ignóbeis. Seu Almeida aparou a maioria deles e não ligou quando foi atingido por um ou outro – aqueles cambitos não o feriam. Depois da quinta tentativa de chute - o jovem trabalhador se esforçando para segurar Galego – Almeida não se fez de rogado: manteve-se sob a perna esquerda e deixou que sua perna direita deslizasse em um arco contra os órgãos genitais de Galego.
IAUUUUUUUUUU, um estrépito de dor que o eco fez rugido.
O jovem trabalhador estava atônito com aquela violência, só que não se atreveu a dar voz contra seu Almeida. Este olhou para o jovem trabalhar e disse: “Sempre fui um tremendo ‘pé-de-valsa’”, e emendou um chute na cabeça e outro no estômago do ladrão de comida. Movimentos sob a síncope da valsa.
“Fique atento, Geraldinho, que você vai aprender que não é necessário chamar a polícia. Garantir a segurança dos produtos da entrega conta muitos pontos para a fama com os patrões. Pegue esse vagabundo e traz ele aqui pra frente, pra essa árvore”.
Galego não podia antever mentalmente o que se sucederia com seu corpo e sua vida, entretanto seus instintos pareciam dizer alguma coisa porque ele se debatia irrequieto, como se o corredor da morte fosse chegando ao fim.
Geraldinho sentia pena do jovem em seus braços: a diferença de idade entre eles deveria ser pouca, quase nenhuma. O sangue de Galego escorria sobre os braços do seu carregador e isso influenciava ainda mais a vontade dele de não participar de ação nenhuma. No entanto, como contrariar homem bom como seu Almeida? Dera-lhe emprego e arrumara-lhe uma menina pra casar. Não, não desobedeceria a seu mestre.
“Coloca ele aqui, rente à esta arvorezinha. Tá dando problema o marginal? Deixa eu dar uma sacudida nele!”, Almeida falou e disse. Aplicou socos grosseiros contra a face de Galego, deixando-o lerdo e fora de ação. Sangue empapava seu rosto que começava a perder sua forma – o olho direito estava inchado.
Com o ladrãozinho à nocaute, puderam encostá-lo na árvore mais facilmente – mas não sem esforço, porque pesava mais por não se sustentar por si só. Geraldinho empurrou o corpo para a árvore e Almeida fez contrapeso. “Geraldinho, corra até o caminhão e pegue a corda grossa que deixo na boléia...”. Almeida ficou segurando o corpo fraco de Galego até Geraldinho voltar.
Neste ponto, Galego tinha as visões mais fascinantes e surreais que jamais tivera em vida. Não via estrelas, nem via o mundo girando. Sua visão apagava e acendia, e cada vez que acendia ele via uma cachoeira de sangue caindo. O chão parecia longe, porque ele não sentia nada abaixo da barriga. Na sua frente havia uma criatura esquisita, redonda. Ela babava de fúria.
Geraldinho voltou com a corda. Havia uma academia de musculação em frente ao galpão e ela acabara de abrir. Os primeiros viciados da manhã chegavam, quase todos homens e imensos. Eles se olhavam e admiravam os músculos que cultivavam, elogiando-se e contraelogiando-se. O jovem trabalhador entregou a corda ao seu Almeida e recebeu uma ordem de volta: “Passe a corda derredor deste marginal!”. Assim Geraldinho fez.
Como a corda era longa, três voltas tiveram de ser dadas. “Amarre bem, até sangrar”, recomendou Almeida, e para Geraldinho um pedido do chefe era uma ordem. Galego despencava-se sobre si mesmo, sem poder cair e sem ficar em pé direito. Almeida deu a bochecha esquerda para o jovem: “Ei, dá um soquinho aqui, galeguinho. Vamos lá, eu não revidarei se me acertar”.
Galego nem pensava em nada. Em sua fraqueza e em suas visões sanguíneas ele apenas pensava em um pouco de comida. Sua barriga estava reclamando de fome há algum tempo. O que aconteceu então depois que seu Almeida lhe machucou o estômago? O jovem sentiu como se o chute expulsara alguma energia alimentar que ainda estivesse ali.
Seu Almeida parabenizou Geraldinho: o mau elemento estava fixo como uma pedra.
“Agora, para que eu veja que você é homem formado e justo, mostre aí sua proteção pelo homem de bem e aplique um murrinho no peito do rapaz!”. Aí, o rapaz que sorria amarelo pelas congratulações, voltou a sua cor normal. Era forte e nunca batera em ninguém, nem tinha intenção de fazê-lo. “Vamos, Geraldo! É só dar um pau nele. Não é macho, não?”. A esta sentença certos homens não conseguiam fugir. Geraldo era um destes homens.
SOC!!
Primeiro soco, a decisão foi feita na fúria e arrebentou como uma onda no mar bravio. Dois dentes caíram.
POW!
“Isto! Isto!”, sorria seu Almeida.
TUNK!
Geraldinho estava descontrolado e não conseguiu evitar aplicar um chute.
O quarto golpe de Geraldinho foi desencorajado por seu Almeida. “Ele está tendo o que merece, só que isto não é tudo. Em Pernambuco, a gente ensinava direito a estes escroques como se portar... Deixa ele descansar um pouco e retomar os sentidos. Os outros caminhões já estão chegando”.
***
Meninos que passaram por ali, nos momentos descritos até aqui, viram Galego sofrendo maus tratos. Um deles ligou pra polícia do seu celular.
Secretária: Alô!
Menino: Tem um homem sendo espancado aqui!
Secretária: Ok, quem está o batendo?
Menino: Uns peões de um armazém aqui próximo. Chamavam o homem de marginal, delinqüente, parece que foi uma tentativa de assalto.
Secretária: Ah, então o elemento está dominado?
Menino: A senhora não entendeu... Ele está sendo linchado!!!
Secretária: Espero que não apareça nenhum destes repórteres metidos à besta, que tomam as dores por um delinqüente. Muito cômodo ele já estar sob controle porque a maioria das viaturas está ocupada. Demorará para que uma chegue aí.
Menino: Minha senhora... o rapaz está sangrando, sendo esmurrado além da conta porque está indefeso!! Não vai fazer nada?
Secretária: Já lhe expliquei a situação. Se quiser, faça algo. Um beijo e tchau!
O telefone foi desligado. Os garotos se olharam e discutiram uma ação a ser tomada. Só discutiram...
***
Galego perdeu a consciência e a retomou logo que o sol, já forte no céu, queimou-lhe a pele. Mal teve tempo de abrir os olhos e um punho se abateu sobre sua visão. Um som abafado de rachadura e mais dois dentes ao chão, vomitados com muito sangue.
“Acordou, safado? Sabe quem eu sou?”.
Pela viela ocular, Galego viu um homem de cinqüenta anos, cabelos brancos e fora de forma. Ele tinha sobrancelhas grossas, papada dupla e coçava a mão que estava machucada. Esmurrar tão forte não era saudável pra homem daquela idade.
“Eu... não sei quem é você, não!”, se esforçou em responder.
“Pra começar, não me chame de você! Para você sou senhor, pois sou dono desse galpão e desse terreno, inclusive da árvore onde está preso!”. Galego observou a área enquanto o cinqüentão falava e se surpreendeu. Cerca de vinte e cinco homens, quase todos negros ou amorenados, que deviam trabalhar no galpão. Pela natureza do trabalho eram todos fortes e bem constituídos.
“Você, vindo aqui se apropriar dos bens transportados até meu galpão, está prejudicando muitas outras pessoas, inclusive famílias necessitadas! Sabe o que ladrõezinhos como você necessitam para que nunca mais roubem?”, interrogava o chefão da área, que vendo não haver resposta completou, “Vocês precisam da forca!!! Mas como esta porcaria dessa constituição não me deixa te matar legalmente, pelo menos sua coragem e honra matarei. Seu Almeida, venha cá.”
Seu Almeida chegou com um pedaço de pau largo e fino na mão. “Pois não, chefe?”, ele perguntou com ares sonsos. “Faça aquilo que pretendia, com muito jeitinho, tá?”, e seu Almeida assentiu feliz.
Galego gelou pela segunda vez no dia. Pensou em Jesus Cristo, na imagem que via dele crucificado, chicoteado e ensangüentado. Imaginava: se ele não fosse santo, não agüentaria tanto castigo. E Galego pressentia, ao ver aqueles homenzarrões estalando os punhos e vociferando como cachorros, que teria de ser santo pelos próximos minutos seguintes.
Seu Almeida, grande líder da violência, girou o pedaço de pau e esquartejou o Jesus na mente de Galego.
***
As senhoras da casa ao lado da academia de musculação escutavam os barulhos vindos da rua. Eram duas delas, uma baixinha e rechonchuda, a outra alta e também rechonchuda. Elas se moviam sem parar pela cozinha. Os gritos de dor e de pedido de socorro as incomodavam bastante, mas não eram o que mais as afligiam. Elas estavam preocupadas com a família.
“Ai, Luzia, você nem sabe... Meu menino foi ver o tal do ladrão de cereais e ainda não voltou. Estão batendo no pobre diabo agora e meu filho está lá. Se o sacripanta decora o rosto de meu filho é bem capaz de querer vingança!”, era a baixinha.
“Iolanda, mulher, e o Tiago lá também está. A gente já vive num mundo cheio de violência que temer pela vida dos nossos pequenos é uma constante...”
“Deus abençoe que eles sejam protegidos, Luzia”
- SOCORRROOO!!! – gritava Galego lá de fora!
“Ai, Iolanda, que este pobre diabo seja calado de uma vez!”
***
Dois socos, dois chutes ou uma tacada. Estas foram as escolhas estabelecidas por Almeida para controlar a fila de justiceiros. A esta altura, cada um dos homens tinha aplicado seu golpe e Galego estava desconjunturado – embora consciente. Cada vez que ele chegava perto de apagar traziam água e cheiros fortes para lhe despertar.
Os dentes da frente estavam despedaçados, alguns da lateral estavam espalhados pelo chão. A camisa de Galego se rasgou e agora estava já no chão, deixando a mostra a barriga cheia de hematomas do rapaz. As pernas se dobravam como mortas e não atingiam o solo. A posição era das mais estressantes.
Todos se preparavam para a repetição dos seus atos de punição. As pessoas passavam na rua e não perguntavam muito o que ocorria. Algumas pessoas paravam para olhar, outras se juntavam à fila do massacre. Tudo parecia natural – afinal, era só sangue sendo derramado e ossos sendo retorcidos.
O pessoal da academia de musculação até então só observava. Vendo pessoas entrando na fila para esmurrar, socar e bater, eles resolveram dar seu apoio ao movimento. Nada inquietava mais aquela comunidade de cidadãos do que o elemento caótico e desonrado que desrespeitava o conceito de trabalho suado. Ainda mais sendo o violentado um jovem, que podia estar trabalhando, nem que fosse capinando ou qualquer serviço igualmente ridículo.
Quem mais se deleitava com a cena era o chefe cinqüentão, que bebia uísque e via os peões lutarem avidamente para proteger os bens de gente mais rica que eles e que os dominava tão bem. Tudo estava interessante, mas o homem tinha idéias para apimentar a situação. Idéias que envolviam os musculosos recém-chegados.
“Aproximem-se minhas queridas pessoas, quer...”. “SOCORROOO!!!, gulp!, por fav... or...”. O pedido de ajuda de Galego cortara a proposta que o cinqüentão faria. Isso irritara o velho homem. “Procurem colocar alguma música aí!”, acenou para umas velhas da sua família, “Enquanto isso, quero dois dos mais fortes, um da academia e outro do galpão, vamos ter uma competição”. Os homens ali presentes se alvoroçaram: quem teria o direito de ser o paladino da justiça? Um ritmo brega começou a tocar em uma caixa de som. “Vale cem reais, eim?”, atiçou o rico homem com uísque na mão. O burburinho se elevou e só foi terminado quando uma pessoa de cada grupo se impôs sobre o restante, na base da força. Dois homens, um robusto e um aparentemente magro se apresentaram.
Galego via dois leões à sua frente, prontos para lhe devorar. A situação de humilhação despertara sua raiva com intensidade jamais vista. Queria se vingar de todos, matar cada um daqueles carrascos e com requintes de crueldade. Aqueles homens nunca seriam páreos contra um revólver – então Galego, um só homem, poderia ser maior que todos eles juntos.
“Bem, abram a boca do infeliz”, ordenou o ciqüentão a uns peões e estes assim o fizeram. Ele olhou bem e pediu um alicate que logo foi providenciado. Sem dó, meteu o alicate boca adentro e trouxe um dos dentes incrustadíssimos na gengiva, um dos que ficam mais ao fundo da boca. “Agora tem a mesma quantidade de dentes sobrando de um lado e de outro... Vamos ver, num murro, quem derruba mais? Que tal?”. Todos os vibraram e começaram as apostas.
***
Um menininho acompanhava seu velho pai até uma loja. No caminho, vê uma pobre alma sendo surrada até o espírito. “Papai, por que fazem ele sofrer tanto?”. O pai, um senhor austero e crédulo nas instituições sociais fala: “Isto é o que acontece para menino curioso e perguntador quando mente para os pais”.
O menino tremeu sem parar – deixara um dos chapéus do pai cair num buraco e mentira dizendo que não sabia onde tinha colocado.
***
O homem da academia vencera a disputa, mas agora todos venciam juntos, colocando os ossos de Galego para fora dos lugares onde deveriam repousar. Ele estava livre das grossas cordas, só que estava no centro de uma roda de torturadores. Ali, por cinco minutos, sentiu a cama do Inferno. Estava quase fora da realidade quando uma dor diferente obrigara-o a urrar. Um homem que devia beirar os sessenta anos lhe espetava agulhas sob a unha.
“Aprendi isto na pele, nos porões de tortura. Lutei para que a injustiça não mais ocorresse, e aí aparece um jovenzinho como tu para demonstrar que minha luta foi em vão... ora!”
Após ter disto isso, o velhinho foi ovacionado e novas ondas de ataque levaram Galego a sofrer terríveis agruras.
O jovem humilhado tentava manter alguma sanidade – sem sua consciência e autocontrole acabaria por eliminar a memória daquelas pessoas ali presentes. Apesar de tanta violência e revolta, ele sentia que no fundo ele que era o errado em toda a situação. Afinal, ele que tivera a idéia do assalto. Tentou pensar em sua amada, que ficara preocupada quando ele saíra. Ela teria de beijar um rostinho amassado desse momento em diante.
IUUUUUUUNNNNN!!!!!
Sirenes policias. O grupo ao redor de Galego dispersou e ele pôde sorrir ao ver policiais discutindo algo com os peões e com o cinqüentão. Pareciam estar conversando seriamente e se entendendo muito bem. Uns policiais puxaram Galego pelo braço e o levaram até a viatura, ele arrastando os joelhos. Dois policiais iam na frente, outro atrás com Galego. Este que acompanhava o rapaz comunicou: “Deixaram pouco para nós...”.
Galego nunca ficara tão feliz em ver policiais...
***
Geraldinho nunca mais conseguira esquecer aquele dia de descoberta. Poucos vizinhos sentiram a bestialidade de toda a cena. Na verdade, grande parte da comunidade da região estava bem feliz e só fez um comentário depois que a viatura se mandou: “Este nunca mais rouba por aqui”.
Thursday, May 31, 2007
Joliscleison
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1 comment:
“Vale cem reais, eim?”
O que ele tentou roubar não valia nem quinze reais. Aí vem um desses sádicos-mor dignos do Dedo de V de Vingança e oferece um valor quase dez vezes maior do que 'perderia' só pra manter a ordem das coisas. é realmente o que acontece.
Bem melhor que o texto abaixo, hein. Tá aprimorando =P
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